A Macaca Que Sabia Demais
Lembro-me ainda de uma fotografia sépia, impressa numa revista feminina, cujo nome já esqueci, que mostrava o meu irmão do meio em camuflado de guerra, com um banjo indígena de quatro cordas à tiracolo, e um pequeno saguim empoleirado sobre o ombro.
Ele sorria com o ar feliz de quem desce do barco egípcio que conduz as almas ao outro lado do tempo. Chegara da Guiné.
A pequena macaca agarrava-se-lhe aos cabelos, com o ar espantado de quem vira o flash de um fotógrafo pela primeira vez, com a mesma ânsia que a prendera á bananeira original de onde fora raptada.
Estávamos no Verão e os dias corriam amenos. A macaca, curiosa, como todos os primatas, depois de haver fatigado o olhar pela interminável imensidão aquática do Atlântico, sobressaltava-lhe a mente os infindáveis prodígios que contemplava.
Meu irmão trouxera-a para casa como se fôra uma espécie de 'pequeno polegar'. Ele era um homem muito belo, de traços clássicos e compleição espartana. Decidira há muito, se o fenómeno não era meramente congénito, que todos os deserdados da fortuna era seus protegidos.
O pequeno saguim quando conheceu os cantos à casa - na altura a família ainda estava reunida e éramos todos jovens com um futuro promissor, que se esperguiçava languidamente em infindáveis tardes de um Verão eterno -, descobriu que o local da sua preferência, para dormir, era sobre o aparelho de televisão, enquanto este se conservava quente, indiferente ao ruído e aos flashes de sequência de imagem que, aprendera desde a sua chegada, faziam parte intrínseca do universo dos homens.
O segundo lugar da sua eleição, durante o dia, era uma enorme janela que se debruçava sobre a baía. Nesses dias a casa tinha ainda o privilégio de espraiar as suas vistas sobre o mar, livre de terminais petrolíferos e cais para descargas de carvão.
Era singular, olhar aquele pequeno ser, sentado como 'O Pensador' de Rodin, em frente às vidraças da janela contemplando a calma baía.
Primeiro pensámos que era uma espécie de nostalgia da sua primeira travessia marítima; depois chegámos à conclusão que ele tentava, à força da perseverança, eliminar a lonjura das águas que separam os continentes, para ver a sua terra natal.
Quando o Outono se fez lentamente Inverno, e as aves abandonaram os beirais, silenciando o canto das matinas, já o pequeno animal tinha definitivamente ignorado o seu local sobre a televisão, e passava os dias contando as pequenas gotas de chuva que tamborilavam nos vidros da janela.
-- Está com saudades das andorinhas, disse minha mãe com o coração agitado.
O meu irmão era quem sofria mais perante a estoica decisão do animal.
-- Lembra-se da mãe e dos irmãozinhos que deixou na mata, alvitrou um amigo para amenizar o drama.
O bicho começou a deixar de comer e mantinha-se durante dias na posição que Rodin imortalizou em estátua, de uma maneira tão absolutamente caricata que se tornava trágica. Já ninguém conseguia suportar a imagem do infeliz animal na sua lenta agonia.
-- Aprendeu a meditar, concluiu a minha vizinha espirita que admirava a lógica frustrante e insondável de Krishnamurti. "Da próxima vez virá como pessoa."
Toda a gente do bairro, nós incluídos, cada vez que entrávamos em casa, tinhamos o acto peregrino de ir olhar a macaca que conseguia ver África através dos oceanos.
Os dias foram correndo cada vez mais frios. Chegaram as tempestades e o mar entumeceu-se em ostensivas vagas coroadas de espuma, com que o vento chicoteava o universo. Havia uma névoa imperceptível que roubava ao mundo a realidade.
Foi a última vez que vi no seu olhar inteligente a procura do meu. Vacilou por um momento entre a apatia e o espanto. Tocava com os seus deditos negros a frieza húmida das vidraças como se, de alguma forma, tentasse apreender pelo tacto a natureza daquela realidade alienígena aonde fôra parar.
-- Aprendeu a pensar, exclamou a minha mãe aflita. "E isso é uma abominação. Alguma desgraça está para acontecer."
Começou por recusar as bananas que tão difícil e dispendiosamente lhe conseguíamos arranjar. Decidiu-se a comer coisas improváveis, como cordões de sapatos e cartões de visita, que meu pai deixava sobre a secretária. nunca soubemos se era uma espécie de vingança por se encontrar naquele mundo hostil, ou se um gosto inusitado pelo sabor da tinta de impressão.
O meu irmão desesperou, saiu de casa e embebedou-se durante três dias. Não sabia o que fazer com o animal que o tinha traído com a indiferença, que é a forma mais rara de paixão.
-- Acabará por morrer de saudades, afirmou apologeticamente a minha mãe.
-- Todos temos que morrer de alguma coisa, respondeu meu irmão, "ao menos que morra de um sentimento imponderável que não é traduzido no resto dos idiomas dos homens."
Nunca compreendi a lógica da sua asserção, mas percebi que se tratava de uma declaração de amor por aquele animal, que lhe inundara a alma.
Quando meu irmão voltou á tardinha, a pequena macaca jazia morta sobre o beiral da janela. Adquirira, como os humanos, o hábito de descansar a cabeça sobre o braço. Mas estava morta.
Meu irmão, depois de tantas mortes inúteis de camaradas, que presenciara na guerra em África, ficou destroçado. Acredito que aquele animal significava para ele todo o horror por que tinha passado e, ao mesmo tempo, a sua derradeira esperança. Nunca mais voltou a ser o mesmo.
Minha mãe continua a afirmar que a saudade é um excesso de pensamento.
Enterrámo-la como um filho adoptivo, num canteiro do quintal. Afinal, tinha ganho pelo sofrimento o direito de pertencer á espécie humano, ou melhor, de ter conhecido antecipadamente a ideia de morte, que é a reverência, se não a submissão, a algo superior. Por outras palavras, teve a ousadia, só concedida aos seres humanos, de perscrutar a face de Deus.
João do O'Pacheco
in Diário do Alentejo 19.01.07
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