domingo, 27 de julho de 2008

"Cântico Negro"


"Vem por aqui" --- dizem-me alguns com olhos doces,

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom se eu os ouvisse

Quando dizem: "vem por aqui"!

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há nos meus olhos, ironias e cansaços)

E cruzo os braços

E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:

criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

--- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou onde

Me levam os meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,

Porque me repetis: "vem por aqui"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar meus pés sangrentos,

A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós

Que me dareis machados, ferramentas e coragem

Para derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátrias, tendes tectos

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.

Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que não principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me faça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onde que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou, 

Não sei para onde vou,

--- Sei que não vou por aí.

                                                                                     (José Régio)