quarta-feira, 2 de julho de 2008

FILOSOFIA DE PRAIA

Ler Jorge Luis Borges numa tórrida tarde de Verão, embalado pelo murmúrio das ondas da maré, é quase um prazer metafísico.
Eu tenho "livros de praia" como as 'tias' da sociedade têm "salidas de playa" --- aqueles camiseiros brancos debruados a azul-ultramar a condizer com a saia plissada, ou calção branco, e panamás de palhinha com apliques de renda.
Antigamente lia com voracidade Agatha Christie e Patricia Highsmith, as duas velhas preversas, como eu lhes chamava, que conseguiam literalmente estraçalhar a minha lógica analítica policial, que é paupérrima, diga-se em abono da verdade. Além disso fartei-me de tentar esquecer as tramas das estórias tantas vezes relidas e passei a Gabriel Garcia Marquez, muito ambora Macondo e toda a paisagem literária de Marquez seja demasiado equatorial para se ler na praia. Dessa maneira, elegi Borges que é do tipo frio, mental e filosófico e não nos coloca em local nenhum a não ser nos labirintos da sua cabeça.
Aconselho vivamente a quem "vá a banhos", como se dizia antigamente, levar um ou dois livros de Borges. "O Aleph", "O Livro de Areia" ou as suas "Ficções", que tem contos absolutamente prodigiosos como "A Biblioteca de Babel" ou "O Jardim dos Caminhos Que se Bifurcam".
Jorge Luis Borges era um ávido leitor de Enciclopédias, daí a sua formidável cultura geral, e um especialista em Filosofia, Teologia, Mitologia e "delírios do recional", sobretudo os seus desdobramentos matemáticos expressos em labirintos lógicos e jogos de espelhos. Os contos não cansam porque são curtos e conduzem-nos invariavelmente a um estado de perplexidade. Nada que um bom mergulho na água gelada da praia de Sines não possa despertar.
Não sei se vem a propósito mas --- Borges afirmaria que "há uma causalidade mágica ligando os acontecimentos no decorrer de uma narrativa" --- encontrei nos arquivos da EDGE.org, no nº 216, de Julho do Verão passado (July 10, 2007), um texto do filósofo español Salvador Pániker sob o título "Regarding A New Humanism".
O "Novo Humanismo" é um conceito recorrente da EDGE, organização criada a partir de um grupo de cientistas e escritores conhecido por "The Reality Club" e que consiste no agrupamento informal das melhores mentes do nosso planeta. A EDGE não tem fins lucrativos e os membros são legítimos donos do copyright do seu trabalho científico, filosófico, literário ou artístico.
Salvador Pániker refere a "Terceira Cultura", citando a famosa alocução de C.P.Snow em Cambridge em 1959 sob o título "As Duas Culturas e a Revolução Científica" (The Two Cultures and the Scientific Revolution) lamentando a cisão académica e profissional entre o campo das ciências e o das letras. Em 1963, na segunda edição do seu livro "The Two Cultures", Snow sugeriu optimista o emergir de uma terceira cultura, como que uma ponte entre intelectuais literários e os cientistas que os poria a falar na mesma lingua. Tal não aconteceria, como Snow prevera, porque foram os pensadores da Terceira Cultura que decidiram dirigir-se ao público directamente evitando intermediários.
John Brockman em 1991 afirmava "... nos últimos anos o parque de diversões da vida intelectual americana fez um desvio e os intelectuais tradicionais foram ficando cada vez mais marginalizados. A educação baseada em Freud, Marx e o Modernismo não são qualificação suficiente para um pensador dos anos 90. Na verdade, os intelectuais americanos tradicionais são, de certa forma, cada vez mais reaccionários e na maioria dos casos orgulhosamente (e perversamente) ignorantes de grande parte das realizações verdadeiramente significativas a nível intelectual do nosso tempo. A sua cultura que dispensa a ciência é muitas das vezes não empírica. Usa o seu próprio calão e lava a sua roupa suja. É supremamente caracterizada por comentar comentários num turbilhão aglutinante de comentários que desagua num ponto onde já ninguém sabe onde é o mundo real."
Do ponto de vista de Salvador Pániker "o novo humanismo devia adoptar certas reformas linguísticas. Veja-se, por exemplo, a extensão em que ainda hoje somos condicionados pela velha construção Aristotélica de sujeito, verbo e perdicado, que também forma o modelo cartesiano de sujeito-objecto de cognição. Esta convenção é responsável --- e foi denunciada por Buddha e David Hume --- por cometer a falácia de acreditar na existência da mente, quando a única coisa de que podemos estar seguros é da existência de actos mentais.
De facto, o que ocorre no género filosófico é que as palavras devem transmitir conceitos deixando pouco espaço para flores de retórica. Em filosofia é muito difícil escapar a um modo gramatical determinado. Martin Heidegger já tinha explicado que tinha abandonado a escrita da segunda parte do seu "Ser e o Tempo" por causa da inadequação da linguagem metafísica que identifica sempre o Ser com o evento de ser, esquecendo a diferença ontológica."
Pániker continua: "Nada nos obriga a pensar que o mundo deva ser completamente inteligível. Pelo menos para nós, símios pensantes. Pelo menos em relação aquilo que nós símios pensantes compreendemos como inteligível (...) o novo humanismo devia começar por uma cura de modéstia, talvez abjurando o muito arrogante conceito de humanismo que coloca o animal humano como ponto central de referência a toda a existência. Um novo humanismo compatível com a sensitividade da metafísica não pode voltar as costas às ciências. (...) Os verdadeiros "textos sagrados" da tradição ocidental têm sido há séculos os dos grandes autores. Platão e Aristóteles, Dante e Shakespeare. Mas também Victoria, Bach, Handel, Beethoven. E Giotto, Fra Angelico, Rembrandt. E Arquimedes, Pascal, Newton, Darwin, Einstein, Heisenberg. E Paul Celan e Bela Bartok. Etcaetera. Todos eles são "autores sagrados". Canónicos. A Física Quântica não é um monumento menos inspirador que a Biblia. Nem menos ambíguo. O cientista Arthur I. Miller escreveu: 'Como grande obra literária, a teoria quântica está aberta a uma miríade de interpretações'." (trad.pessoal).
O Novo Humanismo não poderá, como na Renascença, fazer a fusão de vários campos de Conhecimento humano porque a montanha de especialização se tornou enorme. Mas poderemos ainda esperar que várias áreas de conhecimento comuniquem entre si sem minar o campo um do outro.
Um dos maiores problemas da comunicação humana é exactamente compreender a complexidade de outrém de um ponto de vista de especialista. Não podemos só ver o mundo em estruturas se formos engenheiros, nem em epidemias se formos médicos, nem em flutuações de Bolsa se formos economistas. Urge globalizar o conhecimento nas suas componentes especializadas e ter a flexibilidade de o entender de múltiplos pontos de vista.
Na essência, esta era a ideia de Edgar Morin: "a transdiciplinariedade" que, sem tentar unificar num só os campos de conhecimento, aspira à comunicação entre as disciplinas baseado num pensamento complexo. Não é toda a Física, toda a Biologia, toda a Antropologia... mas vale a pena ligar todas estas áreas ciberneticamente.
É a visão Enciclopédica de Jorge Luis Borges aplicada à compreensão do mundo.
(João do O'Pacheco)