Desde os tempos clássicos mais recônditos que a sociedade humana se debruça atentamente sobre um dos fenómenos mais importantes no quotidiano do ser humano: o Prazer. Nos tempos que correm, com todas as funcionalidades e facilidades que a civilização nos tem oferecido e, perante a concepção algo ambígua do prazer, o sentido prático do ser humano teve por bem considerar que a ausência de desprazer era desde logo objectivo suficiente para o estado confortável que se denominou chamar de “qualidade de vida”. No fundo, continua apenas a ser sempre a clássica cultura do Hedonismo que criou os pilares da modernidade e a alavanca necessária para o desenvolvimento tecnológico e sociológico dos povos e das nações.
Mas há dois Hedonismos (do grego, Hedoné = Prazer) totalmente distintos: o hedonismo pessoal ou psicológico e o hedonismo ético ou social. O primeiro preocupa-se com a obtenção do prazer pessoal em tempo útil, o egoísmo, e o segundo, que pode facilmente ser relacionado com a busca do prazer social geral, o socialismo. Richard Brandt, filósofo moderno que dedicou toda a sua atenção ao tema define-o assim: “uma coisa é intrinsecamente desejável se, e só se, nos dá prazer”.
Quando eu falava anteriormente que a concepção pessoal do prazer é algo ambígua era exactamente por esta definição de Brandt. Há muita gente para quem o desprazer é um fenómeno de hedonismo por ele lhes causar prazer, o que pode ser aceite a nível pessoal e intransmissível desde que ele não tome proporções gerais por uma generalização do conceito. É nesse caso específico que se situam as ditaduras: “o que é um prazer para mim tem que ser prazer para todos”. Aqui a liberdade dos outros não começa onde termina a minha, mas sim, a minha liberdade começa porque termina a dos outros. Pode substituir-se o termo “liberdade” por “prazer” que a afirmação não se torna exorbitante.
Mas, mais preocupante ainda, é a determinação de uma ética proibida do prazer. A Igreja medieval organizou sacramentos de penitência a partir do modelo de uma jurisdição sobre “A concupiscência da carne e do espírito” e já Cassiano nas suas “Instituições” falava do “Espírito de fornicação” e “Dos oito vícios principais”. Chega a estabelecer pares de vícios que têm entre si relações particulares de aliança e identidade. A fornicação, para ele, faz par com a gula porque são dois vícios “naturais” inatos em nós e de que, por isso, é muito difícil libertarmo-nos porque há entre eles causalidade directa: o excesso de alimento acende no corpo o desejo de fornicação. Por isso a base do exercício ascético dos monges, o jejum, como meio de vencer a gula e, desse modo, cortar cerce a fornicação.
Este “combate” terrível contra o prazer, contra o desejável, contra o “natural” fez da Igreja durante séculos, para não dizer milénios, o algoz da naturalidade, da vida, extrapolando a importância do sexo ad nauseam e suscitando a filosofia do proibido/desejável até ao patológico e ao doentio, proibindo as mais básicas técnicas de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis por padrões obsoletos de comportamento para evitar o prazer.
Neste caso existe um contra-senso entre a Igreja e o Hedonismo Geral. Não está provado que o cumprimento dos preceitos religiosos conduza ao prazer e, segundo relatos históricos, conduz ao desprazer e à morte. Um dos símbolos mais importantes da religião morreu efectivamente uma morte terrível de crucificação, o que explica em si mesmo o conflito entre dois Hedonismos inconciliáveis: um que se basta a si mesmo pelo ascetismo, pelo exercício do prazer na renúncia do prazer, e o outro que se rege pela lei do menor esforço do que é adquirido, sendo a aquisição sinónimo de prazer.
Nas filosofias políticas o Hedonismo teria socialmente a sua coroa de glória no Socialismo, do ponto de vista ético: a divisão dos bens comuns pela comunidade, ou seja, o acesso ao prazer equitativo geral, enquanto que no Capitalismo o acesso ao prazer tem uma visão totalmente psicológica e organiza-se na aquisição em tempo útil do objecto do desejo ou dos bens a nível estritamente pessoal.
Mas teremos sempre que considerar uma coisa básica: o ser humano. É na sua constância ou inconstância que se determina o usufruto do prazer e o que ele é na subjectividade da análise dos nossos dados imediatos de consciência. Só depois da constatação desses dados se poderá construir uma filosofia geral.
Os Budistas Zen dizem que o único mal do mundo reside no fenómeno do Ter. Uma vez compreendida a paixão, o desejo e a impossibilidade de Ter de forma permanente e infinita, a existência resume-se ao Ser, ou melhor, à função contemplativa não apenas de nós mas do Todo onde estamos inseridos. Deste ponto de vista o Hedonismo é absoluto, não se pode esperar mais prazer do que ser o prazer em si mesmo. Esta solução não deixa de ser psicológica e, tal como a de todas as religiões, ascética e auto-suficiente: excluído o objecto do desejo porque se tornou parte de nós, não existe o síndrome da perda, porque tudo deixou de ter existência física, temporal e finita para se transformar num continuum espiritual onde todas as coisas, ainda que com existência própria, só existem pela parte componente do Todo.
É claro que nada disto, à primeira vista, tem a ver com a invenção da roda ou da chave de fendas que nos veio sobremaneira facilitar a vida a todos. Nesse aspecto os seres humanos continuam tão completamente hedonistas como sempre o foram e distanciam-se dos animais pela sua capacidade de modificar o universo que os rodeia com recursos cada vez mais utilitários e confortáveis.
A nossa sociedade transformou-se num local tão aprazível (para alguns) que a própria dor tende a ser mitigada, anestesiada ou suprimida de alguma forma e a morte tornou-se uma figura de retórica, uma relação semântica com o Além, uma metáfora. Já não se morre em casa rodeado pelos filhos e pelos netos numa despedida solene mas numa cama higiénica de um hospital para onde somos enviados logo que nos consideram, de alguma forma, uma ameaça ao hedonismo familiar ou uma visão inevitável de desprazer que todos queremos evitar tomar consciência porque, quer queiramos ou não, nos irá acontecer a nós.
O hedonismo não consiste em afirmar-se que o prazer é um bem, mas sim em afirmar que o prazer é o único bem supremo. Mas isso não implica cegamente relegar o doloroso e o inevitável para a prateleira da ignorância. Também o pai de Sidarta Gautama, o que haveria de ser o futuro Buda, evitou que o filho conhecesse a doença, a velhice e a pobreza fechando-o num palácio rodeado de beleza e de bem-estar. Acabou por partir aborrecido com aquilo tudo.
Tal e qual eu, quando me deparei com uma frasco de vitaminas que dizia “abertura fácil”…. Tentei abri-lo várias vezes sem êxito nenhum. As coisas com abertura fácil são extraordinariamente complicadas, ora não encontramos a fitinha que abre a caixa das bolachas, ora se parte o dispositivo da lata de conservas e acaba por ser tudo à facada. Descobri então, em letras muito pequeninas uma frase que dizia: “à prova de crianças”. Aí, senti-me renovado porque as crianças também não a sabiam abrir.