Regina podia estar sentada naquela varanda sobre um rio verde e tranquilo, vendo como os hóspedes comiam as trutas ainda cóscoras da recente fritura. Ela reparava nos seres racionais e insensíveis, via-os pregados nas suas leis, atentos aos seus talheres como se deles dependesse qualquer promoção. Entre a manhã e a tarde, todas aquelas pessoas dominavam o talento, para parecerem próximas de vulgares possibilidades. Regina, recortada no trajecto psicológico de Musil, sorria afavelmente. Pareceu-me uma mulher jovem demais, vulnerável porque assim se adornava de inexperiência. Mas, na realidade, ela possuía poderes inconcebíveis; não esquecera os dons com que nascera e com que cada mortal vem a este mundo.
«Regina --- disse eu ---, tens algo de exagerado para pensar acerca de todos nós?» Ela virou-se na cadeira, e o seu pé escorregou, o que a fez perder o equilibrio e parecer inábil; sempre era desajeitada com os gestos mais comuns e que toda a gente era capaz de executar sem falhas. Isso tornava-a imediatamente candidata a um certo desprezo, que no entanto lhe era poupado no último momento, porque Regina não suscitava a continuidade de qualquer sentimento que pudesse nascer por ela e desenvolver-se contra ela. Sorriu com estranha mansidão e acanhamento. Mas eu conhecia-a bem. Ela não deixava que ninguém ficasse parado numa pequena experiência de momento. Arrancava da profundidade as terríveis faculdades que as pessoas não tinham coragem de assumir, mas que lhes pertenciam.
«Todo o meu medo consiste em não ficar só, em que aproximem de mim como um peixe de um cadáver.» (...)
O restaurante estava cheio, e numa das mesas comiam seis alemães, com ordenada curiosidade, o prato regional que tinham encomendado e que o guia lhes aconselhara. De repente, um deles sentiu o olhar de Regina, perverso de tão destituído de intenção; e perturbou-se.
Tentou munir-se de rancor e de desdém, mas ela não correspondia a nenhuma dessas situações. Era transparente até à renúncia de todo o sentimento. O rapaz ficou subitamente desesperado. Regina voltou timidamente o rosto, e eu percebi que ela dava por encerrado aquele pequeno massacre do entendimento humano.
«Não deves tratar-nos assim, Regina; todos temos direito à nossa naturalidade.» Ela estava preocupada com a madeixa de cabelo escuro solta do gancho, e tentata remediar esse desarranjo; não me respondeu. Insisti: «Regina, o reverso dos teus hábitos é para ti uma culpabilidade. Por isso nos rejeitas a todos».
«Não --- disse ela, discretamente ---, eu só revelo as cenas de anti-amor que desempenhamos todos». (...)
Excerto de «Regina» in "Conversações Com Dmitri E Outras Fantasias"
de Agustina Bessa-Luis