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"O CORRESPONDENTE RUSSO"
por
João do O'Pacheco
Tudo começou por um anúncio de pedido de correspondência que encontrei numa revista deixada ao acaso numa mesa de café. Daquelas revistas femininas que discutem pateticamente as disfunções sexuais mais aberrantes com o fim de criar a estupefacção nos leitores. Foi por essa mesma peregrina razão que abri o magazine.
A notícia interessou-me. Um tal rapaz de nome Dmitri solicitava correspondência em português ou espanhol em troca de ensinamentos do seu idioma natal, o russo. Como sempre fui muito curioso acerca do alfabeto cirilico decidi responder-lhe.
Não sabia exactamente em que lingua deveria fazê-lo e, desconhecendo em absoluto qual o seu nível de entendimento dos idiomas latinos, resolvi-me pelo inglês.
Escrevi uma carta fria e tradicional, traçando uma espécie de biografia minha, explicando o meu interesse pela cultura russa e, de forma algo exibicionista, demonstrando os meus conhecimentos clássicos de literatura.
Obtive uma resposta também em britânico, num inglês um tanto nostálgico, muitíssimo elaborado, como eu imagino que seria traduzido Dostoievsky na capital do Reino Unido no século passado. Um inglês sem erros, extraordinariamente denso e excessivamente adjectivado, à maneira Victoriana, onde se podia ler mais nas entrelinhas do que aquilo que era claramente expresso. Assustou-me a erudição do meu correspondente.
Ninguém escreve em inglês tão perfeitamente como um estrangeiro culto.
A primeira troca de cartas foi meramente motivo para nos conhecermos. Contámos a nossa vida pessoal --- aquilo que é contável a estranhos, muitas vezes mais do que permitimos ao conhecimento intimo entre amigos --- , os nossos diversificados interesses e outras mentiras com que decoramos a personalidade, quando podemos omitir-nos ao juízo fiscal do universo.
A conversa explanou-se e ambos fingimos aquilo que gostaríamos que os espelhos nos mostrassem quando nos contemplamos. Por mais estranho que possa parecer jamais saímos, na nossa troca de ideias, da língua inglesa. O interesse de Dmitri pela língua portuguesa ou espanhola, e o meu pelo russo, ficou perdido em incomensuráveis divagações sobre o teatro de Tchekov, a filosofia quântica de Heisenberg e a gaia ciência, não a poética de Nietszche, mas a arquetípica de James Lovelock.
De tal maneira se tornou intelectual a nossa correspondência que acabei por me ter que munir de livros especializados sobre os diversos assuntos que tratávamos para poder condignamente, e em inglês, corresponder às espectativas daquele estranho indivíduo que, do outro lado do mundo, me roubava a naturalidade e me constituía num ser único e invulgar.
Cheguei a sentir-me orgulhoso de uma tal correspondência que me escolhera para escalpelizar inusitadamente os desígnios do universo e as inquietações da Humanidade.
Um dia, inquieto pelo rumo das nossas conversas, perguntei-lhe porque nunca tinhamos abordado o tema que nos havia reunido, ou seja, a troca de informações sobre os nossos idiomas.
Respondeu-me, de maneira enfática, dizendo que as coisas menores não tinham qualquer importância visto que tinhamos encontrado uma plataforma de entendimento bastante mais elevada. Aceitei a resposta com fria reserva, como se estivesse na presença da criatura, ou como um actor num trabalho de improviso que não deseja denotar o sobressalto de ter esquecido o texto. Na verdade, sentia-me absolutamente perplexo com tudo o que estava a acontecer.
Passados meses já falávamos com tanto à vontade como se nos tratássemos por tu, muito embora em inglês nunca saibamos quando nos estamos a tratar por tu ou por você, é uma das grandes vantagens das línguas expurgadas do arcaico.
Já nós entráramos na 'Trama do Tempo' de John Gribbin e na discussão do Real quando ele, de forma imprevista, e algo desarmante, decidiu enviar-me a sua foto. Nada podia ter-me chocado mais!
Desde o início da nossa já extensa correspondência que eu sabia que Dmitri tinha sensivelmente menos dez anos do que eu, mas isso não constituía qualquer impedimento significativo a nível intelectual. O que me chocou foi a semelhança que o indivíduo da fotografia tinha com a minha pessoa. Fiquei estupefacto olhando-me a mim mesmo com menos dez anos! Mas não fiquei por aqui, fui aos meus antigos albuns de retratos, vasculhei tudo que tivesse menos de dez anos, e um enorme calafrio de terror percorreu-me o corpo. Dmitri conseguia até imitar a maneira de vestir que eu tinha passados tantos anos.
Nauseado pelo fenómeno decidi não escrever mais. Também não lhe enviei qualquer fotografia, como ele me pedira. Quem é que tem coragem de mandar ao passado a verosimilhança do futuro?
À terceira ou quarta carta sem resposta informou-me de que em breve teria oportunidade de se deslocar a Portugal, numa visita de estudo, e que gostaria muito de se encontrar comigo.
A ideia deixou-me num terrível desassossego. O assunto sobressaltou-me tanto que, ao tentar esquecer pura e simplesmente tudo aquilo, perdi o sono. O assunto causava-me repugnância.
Uma semana depois um amigo telefonou-me de Lisboa a perguntar porque o tinha ignorado no Metro. No dia seguinte contaram-me do vexâme que eu tinha dado num Bar da zona, completamente bêbedo, e eu nem sequer saíra de casa nesse dia. Sentia-me terrivelmente assustado. Alguém andava a roubar a minha identidade.
As coisas pareciam precipitar-se por si mesmo sem que tivesse nenhum controlo sobre elas. Também não sabia o que deveria ou não controlar. Em pânico, fechei-me em casa, corri as persianas da janela e coloquei os meus cães à porta.
Dei por mim espreitando por entre os buracos das persianas como um mero ladrão assustado. Foi então que o vi.
Caminhava com os meus passos, e o ar bamboleante que só eu sei dar, em direcção à minha porta. Em desespero aticei os cães, que se levantaram em alvoroço, cheirando ar à sua volta em completo desatino, enquanto uma figura de homem se traçava em contra-luz nas vidraças da entrada. Os cães serenaram. De focinho em baixo e com as caudas a abanar aproximaram-se a farejar o interstício da porta da rua. Depois sentaram-se a olhar a sombra recortada no vidro. Foi então que um ladrou. Ladrou como se dissesse que estava ali. Era um latido de boas-vindas. Tive então a certeza que os animais me haviam reconhecido. Era eu mesmo que estava lá fora e os cães reconheceram-me dez anos antes de mim.