O «dia seguinte» é sempre o primeiro dia do resto da nossa vida. Sobretudo, desamparados e na distância dos afectos de quem nos quer bem, ou mal. Mas são os afectos ou os desamores que nos faltam.
Bruxelas à noite é uma cidade muito bela, com todos os seus monumentos iluminados de forma artistica.
De dia é uma terra nostálgica no cinzento das suas fachadas imponentes, quase tumulares, e no céu permanentemente coberto, onde o sol raramente aparece.
No final da Chaussée d'Ixelles, perto da 'Mairie' (Câmara Municipal), havia um Bar de Jazz, «Le Bièrodrome», onde fui aprender a beber a famosa "stella artois", a cerveja mais famosa da Europa.
O Clube de Jazz tinha um palco com instrumentos próprios onde todo aquele que quisesse podia subir e tocar.
O dono, homem de uns bons 70 e muitos anos, com uma enorme barba branca, e um ar de mestre de qualquer-coisa, contava ao balcão histórias da guerra e de Hitler com efusão inflamada. Seu ajudante de balcão era um jovem acabado de licenciar-se em Advocacia mas, sem trabalho adequado, para ganhar a vida, optara por empregado de balcão. Falava 4 linguas, inclusivé o Español. Para seu ensino directo de linguas eu devia sempre falar em Castellano e ele responder-me em francês, o que era muito divertido.
Numa tarde em que o Bar estava quase vazio e eu falando ao balcão com o meu amigo aprendedor de linguas latinas, pedi ao dono se podia subir ao piano, porque tinha tocado numa Banda há muito tempo, mas em orgão, e gostaria de saber se ainda era execuízel a minha antiga aprendizagem no piano. Ele acedeu. Claro que toquei aquilo que achava mais fácil, uma canção dos Beatles «The Long and Winding Road», enganando-me várias vezes nos acordes e no solo com o baixo. Eu cantava muito bem na altura e bateram palmas, tanto o velhote como o advogado em falência técnica, mais pela interpretação do que pelo desempenho desastroso ao piano. Não estava mais ninguém na sala e eu orgulhoso bebi um whisky pago pelo dono.
O «Bièrodrome» era mais ou menos um símbolo nacional de Bruxelas, porque todos os grandes jazzistas internacionais que passavam pela capital da Bélgica, de alguma maneira passavam por lá. O «velho» conhecia toda a gente e prestavam-lhe vassalagem. O Jazz era a sua vida, e os grandes jazzista internacionais seus amigos pessoais.
Ao fim de semana recebia uma revoada de alemães que vinham de Koln e Dusseldorf para passar as noites de sábado. Eram noites muito tensas para o dono da casa que tinha horror a alemães. Aliás, os alemães têem um comportamento absolutamente obsceno quando estão bêbedos. É asqueroso. Toda a gente conhece isso em toda a Europa.
Nós tinhamos uma pequenina tertúlia aos Sábados à noite, entre Portugueses, Brasileiros, 2 Chineses e 1 Russo, que estavam fazendo o curso de «linguas aplicadas», e bebíamos imenso e ríamos alto para enfrentar os alemães que nas mesas do lado nos desconsideravam e insultavam em «tudesco», que todos nós entendíamos suficientemente bem. Aliás, os únicos ignorantes ali eram «eles», que quando se dirigiam ao balcão a pedir fosse que fosse em alemão, o dono respondia em francês dizendo que não os entendia. Eu sabia que o dono do Bar era Flamengo, portanto entendia perfeitamente o alemão.
A Bélgica tem aquele grave problema de ter sido feita de partes de 2 países, depois da Segunda Grande Guerra, em que constituiram um país com duas línguas: o francês e o holandês. Nunca se entenderam. As línguas são obrigatórias, desde a primária até à universidade. É um país extraordinário, onde a 3ª lingua obrigatória é o inglês, e têm opção adicional para qualquer outra língua do mundo. Ali, toda a gente fala no mínimo 4 idiomas, e compreende perfeitamente toda a gente, desde o português ao russo.
Cristhophe, que dividia o apartamento com meu amigo Zé, ía muito reluntamente connosco ao Clube de Jazz, porque detestava «aquela música». Era muito jovem, deslumbrantemente bonito, com maneiras francesas muito educadas, filho de excelentes famílias. Fugiu à familia porque era «gay», e vivia à larga em Bruxelas como empregado de mesa que, se o pai tivesse conhecimento, teria tido um AVC, no mínimo.
Constituiu-se como meu «guia» de cidade quando eu lhe disse que queria conhecer o «le bas-fond».
Era um moço muito inteligente e extraordinariamente polido, falava quase correctamente o português, saberá Deus porquê!
Corremos então, contra a opinião de Rosy, até às Galeries de La Reine (Konningingalerij), que davam acesso a todos os bares de «mau tom» da cidade. Desde bares de putas a Gay Bares.
Foi muito educativo, sobretudo o «Why Not» e «La Cage» onde fui introduzido à Mafia local para poder entrar.
A «Mafia» era composta por uma série de adolescentes da Tailândia ou coisa semelhante - que eu não entendia o idioma - e que «governavam» literalmente as discotecas. Primeiro tinhamos que ser apresentados ao líder e ser aceites, para estarmos à vontade. O «líder» era uma espécie de gaiato de 14 anos, ridículo e pequenino, rodeado de capangas, do tipo "O Padrinho", que não tinha qualquer hesitação em mandar-te espancar ou mesmo matar, se isso apenas lhe passasse pela cabeça, porque não gostava do teu comportamento reverencial. Uma coisa inacreditável num país tão civilizado. Ainda assim, entrei no jogo, ou poderia sofrer alguns desagradáveis dissabores.
Depois da apresentação suponho que lhe caí no «gosto» porque fez sinal ao Barman e caíram vários whiskies na nossa mesa já pagos.
Rosy seguiu-nos, e embora tivesse sido informada pelo Christophe que o Bar era Gay, e era proibida a entrada a mulheres, vestiu-se de homem e tentou a entrada.
Diego era o porteiro, um español muito atento... e descobriu que ela era mulher. Portanto não pode entrar. Ficou irritadissima várias horas há espera lá fora que eu saísse da minha aula educativa de «Bares Gay».
Diverti-me imenso. Mesmo com a Máfia por perto vigiando tudo.
É claro que tudo aquilo era uma espécie de canibalismo e tráfico humano. Muito assustador. Divertidíssimo para quem está bêbedo a cair.
(to be continued)
João do O'Pacheco