segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

TENTAÇÕES


Sempre houve uma grande discussão entre o historiador Geoffrey Elton (the modern historian's dilemna: quer dizer 'moralistas', profetas e "wise men") - acerca das conclusões de Phillipe Ariès, o orientador da "Enciclopédia da Vida Privada" - obra vastíssima felizmente traduzida em português os 5 Tomos. Mas é ineludível que o trabalho de Ariès com Michel Foucault é sobretudo notável. As discórdias entre britânicos e gauleses a nível intelectual são do menu habitual, e já ninguém liga muito, a não ser académicos com tendência para as "technicalities" do detalhe.
Mas eu encontrei um texto - não na Enciclopédia da Vida Privada - que tive a sorte de comprar na altura certa - onde os textos são enormes e de consulta - de Phillipe Ariès, que se chama SÃO PAULO E A CARNE.
É inteligentíssimo e não posso deixar de transcrever.
"Em duas passagens (I Cor 6, 9-10, I Tim 1, 9-10), S.Paulo descreve uma lista de pecados dando-lhe uma ordem que parece seguir uma hierarquia. Desvenda uma concepção do mal onde se reunem e combinam o judaísmo e o helenismo do seu tempo, onde aparecem as grandes tendências do que tornará a moral cristã, mas que ra já uma moral pagã em formação. É muito importante o lugar que aí ocupa a sexualidade.
Nesses dois textos, são divididos em cinco categorias os seguintes pecados: contra Deus, contra a vida do homem, contra o seu próprio corpo, contra os bens e as coisas, e pela palavra. Pecam contra Deus, em primeiro lugar os idólatras, como é evidente; depois, os que se opõem à Justitia, os insubmissos, os desobedientes aos mandamentos e ao respeito devido às Pietas (a que chamaríamos o sagrado), os sacrílegos, os profanadores, os ímpios. Pecam contra o homem os assassinos: os parricidas, os matricidas e, depois, todos os outros homicidas. Em seguida vêm os que pecam contra o corpo, que S. Paulo define como o templo do Espírito de Deus, logo um lugar sagrado onde nem tudo se pode fazer: falava-se antigamente em pecados da crne, hoje dir-se-ía delitos sexuais! O grupo de pecadores da carne está, por sua vez, dividido em quatro subgrupos, sendo conveniente aqui prestar muita atenção ao significado das palavras, mesmo se algumas forem tomadas num sentido geral e vago (fornicação). É muito natural que haja um crescendo de grupo para grupo. O primeiro subgrupo é constituído pelas prostitutas: fornicarii (em grego, pornoi). O segundo é o dos adúlteros, isto é, os que seduzem a mulher do outro - e as mulheres que cedem a esses actos de sedução. A origem etimológica (adulteratio) sugere a ideia de «alteração», mais do que um acto sexual propriamente dito. O terceiro grupo é o dos molles (malakoi), para nós particularmente interessante, pois contém revelações importantes e novas (opinião que Michel Foucault também claramente expôs no nosso seminário). O que é a mollities? É de salientar que as expressões utilizadas para designar, ao fim e ao cabo, actividades sexuais como a fornicação, o adultério, não se referem a orgãos, ou a gestos. No fundo, não é por pudor, pois nem o grego, nem o latino tinham medo das palavras - São Paulo, mais adiante, até se permite uma espécie de jogo lúdico sobre o prepúcio dos curcuncisados. (...)
Com o aparecimento de "mollities", surge uma mudança. O termo é pejorativo e aproxima-se de «passividade», na qual, segundo Dover e Paul Veyne, os romanos viam um aviltamento do homem, um desonra, uma prática indigna e condenável. Era importante para o homem romano - e também para o japonês, acrescenta Paul Veyne - não desempenhar um papel passivo no amor, quer ele fosse homo ou heterossexual. A reprovação estendia-se a alguns comportamentos sexuais por serem passivos.. (...)
Como se vê, os pecados sexuais ocupam um lugar importante logo a seguir aos homicidas e antes mesmo dos pecados contra a propiedade, se se admitir, como parece lógico, que a enumeração de S. Paulo segue uma graduação.
Havia actos sexuais malignos e proibidos, quase tão maus como o homicídio. É certo que são sempre designados por nomes estranhos à fisiologia do sexo, mas as
mollities vem introduzia uma nova noção. Por outro lado, a homossexualidade, difundida no mundo helenístico e aí considerada prática normal, tornava-se um acto abominável e proibido. É mesmo o único delito sexual cujo nome evoca claramente uma atitude física : musculorum concubitores.(...)
Doravante , as ideologias estabelecem-se. Já não é preciso senão codificar e desenvolver. De qualquer modo, é bom precisar que esta moral é anterior an Cristianismo. Todas as transformações da sexualidade, diz-nos Paul Veyne no seu admirável artigo sobre o amor em Roma, são anteriores ao Cristianismo. E acrescenta que as duas transformações principais são a passagem de uma bissexualidade activa (isto é, em que o homem reivindica papel activo, o contrário da mollities) a uma heterossexualidade de reprodução e a passagem de uma sociedade em que o casamento não é nada uma instituição, a uma sociedade onde é tácito que o casamento se constitua instituição fundamental (...)"

Philippe Ariès
Prof. École des Hautes Études en Science Sociales
(excertos do livro "Sexualidades Ocidentais")