quarta-feira, 25 de março de 2009

A MULHER DO ESTRANHO OLHAR

Aconteceu-me há vários anos este encontro inesperado.
Estava eu sentado numa pequena esplanada de um café, quando uma jovem se acercou de mim, num modo absolutamente original. Eu, na altura, trabalhava para o Turismo e isso não constituía nenhum problema. Mas não tinha costume de me relacionar fora do trabalho com estranhos. Pediu para se sentar. Eu, obviamente, disse que sim. Mas a conversa seguinte foi deveras intrigante.
Não me perguntou coisa nenhuma, por isso embaraçadamente fui eu que tive que fazer as honras, de forma algo confusa. Ninguém se senta na minha mesa, sobretudo a falar em francês, de quem eu não faça uma leitura peregrina « que se passa aqui? ».
Tudo se assemelhava a uma coisa qualquer traiçoeira. A rapariga parecia estar absolutamente à vontade comigo e eu totalmente em pânico. Ainda não estávamos nos tempos em que ninguém não acredita em ninguém.
Perguntei-lhe as coisas básicas, entre m whisky e outro. Ela só bebia água Evian, caríssima, mais caro que o meu whisky.
Mas vinha vestida naquelas jeans surradas e uns ténis que deviam ter sido moda há 20 anos, vermelhos, nojentos, mas bonitos! A pessoa menos acreditável do mundo.
Perguntamos sempre coisas básicas para entabular conversação. O nome, o sexo - se não é perceptível - no fundo o que estão ou vão fazer no futuro próximo.
A coisa mais estranha na moça era a sua solidão habitada. Aquele olhar sem perguntar coisa nenhuma.
Foi quando comecei a ficar inquieto. Ficamos sempre inquietos com gente que não nos é comum.
Revelou-me que estava de passagem por aqui. As pessoas normais perguntam de imediato «Então para onde vai» e coisas desse teor. Achei tudo tão estranho que era escusado fazer-lhe a pergunta.
Eu uso óculos escuros em permanência por hiper-alergia à refracção das casas brancas alentejanas. Ainda assim, tirei os óculos para olhar a jovem que tinha uns olhos profundamente negros. Foi um momento tão confidencial que eu nem sei explicar.
Eu nunca tinha passado por uma experiência destas, em que nada se passou. Dissemos adeus com um simples aperto de mão... e acabou ali.
Mas aquela pessoa tão completamente diferente das outras a que sempre me habituei e se senta na minha mesa, utiliza a minha intimidade e fala directamente comigo como eu falo com o meu cão, foi uma experiência única.
Sem querer nada, nem dinheiro, nem sexo... só companhia de meia-hora!
Se há pessoas inesperadas no universo, aquela mulher de olhos negros ficará para sempre no meu coração. Não por ser bonita. Eu nem reparei se era bonita. Mas tenho a certeza que era única.
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O seu olhar enigmático dizia mais, dizia da solidão, da falta de esperança, da presença contínua da morte, do seu desprezo por tudo o que a vida lhe retirara. No fundo, a total ausência de Deus na sua alma.
Aquele olhar sombrio e espelhado de azeviche lembrou-me de uma freira que apanhei na mesma carruagem no comboio Bruxelles para Genève. Não tinhamos qualquer motivos para conversa, até porque não sou católico, mas sou bem educado. Estávamos frente a frente nos bancos e ela sorria, com o sorriso das mulheres cujo mundo já abandonou há muito e só cá estão como partidárias da solidariedade do nosso desespero.
Perguntei-lhe: «Para onde vai Irmã?». Ela era francesa. Nunca se sabe naquelas paragens do mundo com tantas línguas e fronteiras em que lingua nos respondem. Mas ela respondeu: «Para onde Deus quiser que eu vá». Eu esbocei um sorriso, o que ela achou extraordinário. E concluiu: «Ninguém vai para lado nenhum a não ser que Ele o deseje, por isso não estou preocupada».
Foi isso exactamente o que vi naquela rapariga de olhar estranho que dizia ir para o norte de África viver com os Berberes sem quaisquer condições financeiras.
Aquela solidão inusitada, aquela coragem ambígua, entre o deserto e o oásis, comoveu-me imenso.
Espero que tenha chegado a algum oásis e não ao deserto. Mas, se a sua procura era o deserto, era porque sabia suportar por mais de 40 dias os limites da provação.
Eu ainda contínuo comodamente no meu sofá há mais de 20 anos ouvindo jazz e pensando na profundez do seu olhar. Enquanto ela, provavelmente, terá tipo mil aventuras, ou simplesmente morreu, ou quem sabe vive com um sheik num palácio no meio das areias. Quem sabe.
Porque uma mulher com um olhar daqueles nunca poderia deixar ninguém indiferente.