terça-feira, 24 de março de 2009

O PRIMEIRO DIA DO RESTO DA VIDA DE MARIANA

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Mariana acordou sobressaltada com o som estridente do despertador. Aquele despertador era uma espécie de inimigo natural, já amassado de tanta queda e trambulhões que tinha levado com o seu despertar intempestivo ao gesto intuitivo da mão que o recusa. Levantou-se porém num acto automático e ainda estremunhada entrou na casa de banho e abriu o duche, enquanto se mirava abstracta no espelho tentando reconhecer-se a si mesma.
Eram 6 e meia da manhã. A casa estava mergulhada num enorme silêncio e a luz do dia ainda não despontara.
Ainda assim, Mariana abriu as cortinas da janela e olhou a madrugada lá fora como se contemplasse o vazio. As luzes da cidade ainda estavam acesas, e um carro ou outro passava lá muito embaixo do seu apartamento do 7º andar sem fazer ruído.
Encaminhou-se para a sala, ainda ensonada, abriu a TV para ver as imagens do trânsito à entrada da cidade e ouvir as primeiras notícias da manhãs. Depois, ligou o computador para ler os e-mails que tinham chegado durante a noite. Eram muitos. Pensou que seria melhor fazê-lo depois do duche que já corria e devia estar quente.
Quando saiu do banho estava totalmente desperta e agradavelmente veio sentar-se na sala em frente à TV para ouvir as "últimas" da manhã.
Começou a escrutinar mentalmente o que iria vestir. A luz despontava no horizonte e a manhã finalmente saía azul do negrume da noite.
Pensou na sua saia verde e seu colete castanho. Ainda tinha tempo, podia fazer experiências de roupa.
Foi-se vestindo até vir meia vestida ouvir o noticiário das 7 e ver de novo o trânsito nas entradas da cidade e a barafunda que poderia evitar se fosse mais cedo.
Quando finalmente estava totalmente preparada para sair - embora ainda fosse cedo - sentou-se de novo em frente à TV, sua companheira de solidão.
Ela sabia que havia algo que não estava correcto mas a sua intuição feminina não sabia dizer-lhe o quê.
Ficou silente e perplexa durante uns instantes, e abandonou os seus actos automáticos, como se de repente todo o universo se tivesse abatido sobre si.
Ao olhar as longas filas de carros que entravam na cidade na TV teve de súbito a noção de que não teria que sair de casa: tinha sido despedida no dia anterior.
Ficou queda e rigida, espantada, com a informação que o seu cérebro lhe dava. E a memória acorreu em catadupa com todos os acontecimentos do dia anterior.
Afinal não tinha que ir trabalhar. O sorriso despontou-lhe nos lábios mas foi quase um esgar rasgado de angústia.
Ainda ficou alguns instantes contabilizando os seus sentimentos mas resolveu fazer café. Não havia pressa nesse dia.
Quando entrou na cozinha, impecavelmente arrumada, não a reconheceu. Não era costume tomar café em casa. Aliás, nem almoçava nem jantava em casa. Saía demasiado cedo e chegava demasiado tarde, e cansada para algo mais que não fosse um banho e o sono para o dia seguinte.
Ligou a máquina eléctrica do café mas não fazia ideia onde andaria o café. Então começou a abrir armários da sua cozinha «modelo» que jamais tinha sido utilizada.
Começou por descobrir coisas espantosas de que já nem se lembrava. Tinha um Bule chinês para café lindo e chávenas que não tinha a menor ideia quando as teria comprado. E lindissimos pratos pintados á mão para sopa.
O café estava fora de prazo há um ano pelo menos, mas ela utilizou-o na mesma. Não seria pior que o café que serviam no botequim ao lado do seu trabalho.
Tudo para ela era um espanto. A sua casa era um universo inabitado. Tudo ali era uma arrecadação de memórias que ela tentava recordar agora porque tinha adquirido tantas coisas e nunca tivera tempo para se servir delas.
Veio sentar-se com o café em frente à TV e começou a ouvir vozes lá fora. Eram as suas vizinhas falando uma com a outra, que ela nem conhecia. Cruzara-se com elas no elevador, mas nunca tinha falado com elas. Falavam de janela para janela sobre coisas triviais. O cão, o gato e o preço da fruta. Mariana estava fascinada com tudo o que lhe estava a acontecer. As vizinhas diziam que iam pôr o lixo no contentor, e ela curiosa tentou encontrar lixo para ir também, se encontrar com elas. Mas não havia lixo em casa.
Olhou a sala à sua volta, os cinzeiros impecavelmente limpos, os CDs arrumados nas estantes e os livros cuidadosamente catalogados por autor. Estava cada vez mais perplexa: aquilo era a sua casa, o seu Forte, arrumado como um museu. Ninguém ali vivia, ou pelo menos, nenhuma alma parecia habitar aquele espaço.
Começou por tirar os sapatos de salto alto que tanto a incomodavam. Tirou a roupa em seguida que jogou no chão sem se preocupar, e foi em busca do seu robe japonês vermelho com dragões que se lembrou que tinha. Revolveu tudo até o encontrar, vestiu-o e volto á sala de estar.
Procurou algumas bolachas, que estavam fora de data, mas não se importou muito.
Sentou-se, bebeu seu café, e pôs sua música dos tempos de juventude.
E em frente à TV sem som, ouvindo suas músicas preferidas, bebendo seu café fora de prazo e suas bolachas com mofo, finalmente sorriu.